quarta-feira, julho 25, 2012

Magreza é virtude?

Vivemos sob a ditadura da magreza: ser magro hoje é tão importante quanto ser honesto. Mas a regra, claro, só vale para o sexo feminino. Será que um dia voltaremos a comer sem culpa?

Por Leila Ferreira



Ontem comi doce de leite com queijo. Anteontem tomei sorvete. E, entre uma e outra sobremesa, temperei minha vida com duas fatias de bolo de coco. Enquanto desfrutava do sabor maravilhoso do doce, do sorvete e do bolo, tentei me lembrar de como é comer o que existe de mais gostoso sem sentir culpa. Não consegui. Aquela felicidade plena, aquela sensação maravilhosa de saborear um doce que se ama sem pensar em mais nada, sem sentir nada além daquele sabor, foi riscada do cotidiano das mulheres. No dicionário feminino, o verbete 'prazer' vem sempre acompanhado da palavra 'culpa' -pelo menos quando se fala de alimentação. Antigamente, nós, mulheres, não podíamos ter apetite sexual. Hoje não podemos ter apetite -ponto final. É por isso que eu sempre brinco que nos tiraram de Bangu 1 e passaram para Bangu 
2. O endereço da cadeia mudou, mas continuamos prisioneiras. Antes era a moral que nos aprisionava. Hoje é a estética.

Estive na Índia recentemente e passei um bom tempo lendo a seção 'Matrimonials' dos classificados dos jornais. No país onde a imensa maioria dos casamentos ainda é arranjada pelas famílias, os pais recorrem aos classificados para procurar seus futuros genros e noras. Eles descrevem o filho ou a filha que vai se casar como a mais perfeita das criaturas (claro), mas em contrapartida exigem uma série de predicados dos candidatos a entrar para a família. O processo todo é muito curioso, por causa das diferenças culturais -a questão da casta, por exemplo, ainda pesa muito. Mas o que mais me chamou a atenção nesses classificados foi justamente um ponto de coincidência com a nossa cultura: a valorização da magreza feminina. Quase todos os pais exigem que a futura nora seja magra. Num país em que o índice de obesidade deve ser insignificante, a exigência é ainda mais surpreendente. E ela reproduz um conceito que nossa cultura já conhece bem: a magreza como virtude.

Ser magro, hoje, é tão importante quanto ser honesto. Aliás, vamos passar a frase para o feminino: a magreza nas mulheres hoje é tão valorizada quanto a honestidade. Sim, porque nos homens a magreza é apreciada e admirada. Mas, se eles forem cheinhos, a gente perdoa. O que nossa cultura não aceita é a mulher acima do peso -e o peso em questão é ela, a própria cultura, que define. Se a mulher não é magra, ela pelo menos tem que mostrar que se esforça 24 horas por dia para emagrecer. Se não luta contra os quilos, é vista como fraca, desleixada, indisciplinada, ou seja, o julgamento estético ganha um caráter moral. De volta ao começo? Mais uma vez a moral nos aprisionando?

Não é à toa que as mulheres hoje sobem na balança da mesma forma com que se ajoelhavam nos confessionários de antigamente: cheias de ansiedade e medo. Temem ser julgadas e punidas por seus excessos -não mais da alma, mas do corpo. É por isso que, quando vamos comer algo que engorda, a gente diz: 'Eu mereço!'. Ou seja, estou em dia com os meus deveres, e por isso posso cometer essa pequena transgressão. É por isso, também, que os pais indianos listam a magreza da futura nora ao lado de predicados como séria e trabalhadora. Ser magra passou a ser uma virtude valorizada tanto na esfera social e no mercado de trabalho quanto no mercado matrimonial.

Saudades de Bangu 1? Não precisamos chegar a tanto. Nem a prisão da alma, nem a prisão do corpo. Além dos melhores bolos e dos melhores sorvetes, nós, mulheres, merecemos um mundo sem qualquer tipo de prisão.

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