Por Rubem Alves
Ao que tudo indica, comer um tijolo diariamente faz mal à saúde. Mais que dois maços de cigarro. No entanto, nunca encontrei médico que combatesse este pernicioso hábito. Falam do perigo do torresmo, das picanhas engorduradas, das frituras, do açúcar, da vida sedentária, da cerveja... Mas sobre o perigo da ingestão de tijolos o silêncio é total. Claro. Não é preciso. Ninguém deseja comer tijolos. A proibição aparece somente no lugar onde mora o desejo. Os bombeiros só são chamados quando existe incêndio. Está proibido (inutilmente) cobiçar a mulher (e o marido) do próximo. Porque se cobiça, é óbvio. E também está comandado honrar pai e mãe, porque, imagino, até os escritores sagrados sabiam sobre Édipo, a sinistra mistura de ódio e desejos proibidos que estão misturados nas relações entre pais e filhos. E se está proibido matar e roubar é porque estes desejos estão bem vivos dentro da gente. A proibição revela sempre a presença do seu oposto, no lado do avesso, escondido.
Vai isto como introdução à continuação de nossas meditações demonológicas, já iniciadas. Para absolver o Diabo de uma acusação injusta que sempre se lhe faz, de que ele coloca desejos impuros na cabeça dos pobres mortais. Nada mais longe da verdade. Este poder não lhe foi concedido. Não se pode colocar um desejo no coração de ninguém. O que se pode fazer é abrir as portas para que os que já existem, trancados e silenciados, apareçam na sala de visitas onde os convivas, na companhia grave de clérigos e princípios de moral, falam sobre as coisas com as quais todos concordam e que não fazem ninguém enrubescer. O Diabo não joga porcaria dentro da fonte. Ele só mexe no lodo que repousava no fundo da água limpa. E aí começam a surgir sapos, cobras, escorpiões - e o rosto de Narciso vira coisa feia.
Mas não é só isto que as artes do Diabo fazem aparecer. O fundo das águas é lugar encantado, onde moram também lindas criaturas, sereias, iaras, borboletas de asas coloridas, gaivotas plainantes no ar, barcos à vela entrando no mar, e até mesmo uma bela adormecida. Vivem lá, submersas, esquecidas... Mas quem as submergiu? Nós mesmos. Algumas, por serem feias demais. Foram escondidas por vergonha, como antigamente se escondiam os urinóis nos criados-mudos. Outras, por serem belas demais, ousadas demais, livres demais, e faltar-nos coragem para tomá-las como companheiras: por medo de voar, por medo de navegar, por medo de amar. A beleza faz convites que assustam...
Pois é só isto que o Diabo faz: ele acorda os desejos que já moravam em nós. Ele não bota o ovo. Só quebra o ovo que nós botamos, para ver o que tem lá dentro, se vida ou morte. Sutil. Sutilíssimo. Os textos sagrados dizem que a serpente era a mais sutil de todas as criaturas que Deus havia colocado no Jardim. Escorrega com fala mansa até o lugar onde moram os nossos desejos. Cheguei a pensar que ela foi o primeiro psicanalista, pois ambos estão à procura da mesma coisa: os desejos esquecidos.
É aí que começa a segunda parte da sua tarefa. Primeiro soltou os desejos. Depois, como sutil testador, nos coloca a questão: "Você sabe que não é possível ficar com todos. É preciso escolher. Se você tivesse de rejeitar todos, menos um, qual seria o escolhido? Onde está o seu coração? Qual é a sua verdade?" E começa a fazer como os oftalmologistas que colocam uma lente e depois outra no nosso olho e dizem: "Esta ou aquela?" O que é que você ama mais? Qual é a sua verdade? E nos vai despetalando, como quem despetala uma flor, para ver o que sobra, para ver o que somos. Pois somos o que desejamos. A alma é um espaço onde se ouvem as mais distintas melodias, selvagens ritmos de tambores, cósmicos corais gregorianos, bandas de rock metaleiro, flautas doces, canções de ninar, canções de amar, marchas militares - tudo ao mesmo tempo. E o Diabo nos faz decidir: "Esta ou aquela?" Afinal, qual é a sua?
E chegamos então a esta estranha conclusão: o testador está a serviço do amor. Vai nos obrigando a decidir. Na medida em que decidimos, os contornos de nosso rosto vão ficando cada vez mais claros, refletidos na água da fonte.
Álvaro de Campos tem um verso que diz mais ou menos assim: "Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim." Intervalo, um espaço indefinido onde a minha verdade se perdeu, enfeitiçada pelo pedido dos outros. Os outros pedem que não sejamos o que somos; que sejamos só o que eles desejam. E ficamos sem rosto. Só máscaras. Cebolas sem cerne, só casca. O Diabo nos coloca entre o martelo e a bigorna e vai nos forçando a tomar decisões. Pode ser que, ao final, tenhamos a experiência suprema de horror. Quando, diante do espelho, não vemos rosto algum, apenas os rostos de outros. Acho que é por isto que todo mundo fala mal do Diabo: porque, além de ser ferreiro de martelo e bigorna, é também especialista em beleza, com espelho na mão. E o reflexo no
espelho dói mais que o martelo na bigorna...
(O terror do espelho é uma crônica extraída do livro "O retorno e terno", 28ª ed. Papirus)
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