O Cristianismo por trás de Nárnia – Alegorias,
mitos e a Bíblia.
Aslam significa leão. É um
personagem que morre pelos outros e depois volta a viver. É filho do Imperador
do Além Mar. Mudando de história, os judeus tinham uma promessa de um messias,
o rei deles, filho de Deus, que viria a terra para salvá-los e morrer por eles.
Chamavam-no de Leão de Judá. Para os cristãos, este é Cristo, que morreu e
ressuscitou. Simples coincidências? Ecos da fé do escritor das Crônicas de
Nárnia, C. S. Lewis? Ou algo a mais?
As Crônicas de Nárnia são
sete livros que C.S.Lewis escreveu nas décadas de 40 e 50. Sete, por sinal, é
um número recorrente na história judaico-cristã, considerado o “número da
perfeição” dentro da simbologia religiosa. Há leitores que insistem na ideia de
que Nárnia é só mais uma história, só mais um livro dentro da literatura
imaginária infantil. Mas são tantas as comparações com o cristianismo, que fica
difícil achar que realmente não há semelhanças. Lewis, ele mesmo, já tinha sido
ateu, mas tornou-se um cristão e escritor de diversos clássicos da teologia
britânica do século XX, como Cristianismo Puro e Simples, Cartas do Diabo a seu
Aprendiz e O Peso da Glória. Nada mais coerente do que transpor alguns dos seus
conhecimentos – e, muitas vezes, teorias complexas – em sua literatura
infantil. Da mesma forma, Lewis escreveu alguns livros mais adultos, entre
estes a Trilogia de Ransom.
Nárnia, portanto, seriam
histórias repletas de pequenas lições, alegorias das histórias bíblicas e
apresentações de teorias de Lewis. Há quem diga que Nárnia pode ser até real,
mas isso não há como discutir. Quando Lewis decidiu escrever os livros,
provavelmente queria passar ensinamentos para as crianças, talvez dar uma
chance delas conhecerem tudo aquilo que perderam junto com seus pais na II
Guerra Mundial. Professor que era, apaixonado pela mitologia e ainda abrigando
quatro crianças, nada mais normal da parte do escritor.
Para compreender o caráter
alegórico, é preciso entender o significado desta figura de linguagem. Se a
‘metáfora’ é quando a identidade de algo é firmado com um atributo que tem em
comum com outro elemento, ambos retirados da realidade e quase sempre usado de
forma curta na literatura, este termo não basta para Nárnia. Já a ‘alegoria’,
muitas vezes usada na retórica, é a “representação concreta de uma idéia
abstrata”, muitas vezes mítica, expressa na fabulação (A Alegoria, Flávio R.
Kothe). Nárnia é exatamente isto, a fábula composta para representar uma ideia;
elementos concretos, nem sempre retirados da realidade, usados para
significados abstratos.
Como o livre-docente em
Crítica Literária e Literatura Comparada Flávio R. Kothe exemplifica, São Jorge
e o dragão é uma história alegórica do bem e do mal. Nárnia, portanto, é uma
alegoria do cristianismo, com a licença poética de Lewis. Kothe também lembra
que há várias leituras possíveis das alegorias, nunca uma só interpretação, mas
é necessário interpretar via exegese, ou seja, levando em conta o contexto
histórico. Nárnia, por sua vez, sempre é melhor compreendida se estudarmos
quando foram escritas e os outros escritos de Lewis.
O passado de Lewis,
também, ajuda na compreensão de Nárnia. O caráter alegórico não é somente uma
licença poética, uma figura de linguagem na literatura infantil cristã. Para
Lewis tinha um significado mais especial na história de sua conversão ao
cristianismo. Ateu convicto, Lewis, como ele mesmo contou em Surpreendido pela
Alegria, um dia passou a acreditar em Deus. Mas era um mero teísmo, ele não
estava convencido de que o cristianismo era real.
David Downing, em sua obra
C.S.Lewis: o mais relutante dos convertidos, conta como no dia 1º de outubro de
1931 Lewis escreveu para seu amigo Arthur que não cria somente mais em Deus,
mas em Cristo. O ponto da conversão ao cristianismo de fato teria sido uma
conversa com o acadêmico Hugo Dyson e o escritor J.R.R. Tolkien (sim, o pai de
O Senhor dos Anéis era amigo íntimo de Lewis, e estes três participaram de um
mesmo grupo de discussões literárias). O aspecto final que faltava para Lewis
se tornar um cristão era justamente ligado com a interpretação dele das
mitologias, o que pode explicar o fato dele ter criado mais uma mitologia para
dar eco ao cristianismo.
“(…) Os três haviam
começando a falar sobre metáfora e mito logo após o jantar, continuando a
conversa enquanto caminhavam ao longo do Addison’s Walk perto do alojamento de
Jack no Magdalen College e só foram dormir às quatro da manhã. Essa conversa
pode muito bem ser considerada o momento decisivo na vida de Jack [apelido de
C.S.Lewis], pois o ajudou a resolver questões com que ele se vinha debatendo
desde a infância. De modo específico, proporcionou-lhe um modo de entender a
encarnação como o cumprimento histórico dos mitos do Deus-que-morre encontrados
em muitas culturas. Tolkien e Dyson, que compartilhavam a reverência de Lewis
pelo mito, pelo romance e pelos contos de fadas, mostraram-lhe que a mitologia
revela sua própria espécie de verdade e o cristianismo é mitologia verdadeira.
Lewis insistira que os mitos não passavam de ‘mentiras proferidas por meio de
prata’, mas eles responderam que o mito era mais bem explicado como ‘um
vislumbre real, embora desfocado, da verdade divina incidindo sobre a
imaginação humana’. Argumentavam que um dos grandes mitos universais, o do
Deus-que-morre em sacrifício pelo povo, mostra uma consciência inata da necessidade
de redenção não por meio das obras pessoais, mas como dom proveniente de alguma
esfera superior. Para eles, a encarnação [de Deus em Cristo] era o ponto
principal em que o mito se tornava História. A vida, a morte e a ressurreição
de Cristo não só concretizavam tipos do Antigo Testamento, mas também
corporificavam – literalmente – motivos centrais encontrados em todas as
mitologias do mundo. (…) Para Lewis, o cristianismo passaria a ser, dali por
diante, a principal fonte de todos os mitos e histórias de encantamento, a
chave de todas as mitologias, o mito que desabrocha em história.”
Comparações montadas,
alegoria do cristianismo. Lewis compôs em Nárnia mais um mito de Cristo e a
história de seu povo, provavelmente buscando com isso atingir as crianças,
ganhar uma porta na história delas para Cristo, que tanto fez diferença na vida
dele. A série “O Cristianismo por trás das Crônicas” busca desvendar diversos
destes traços cristãos nas obras narnianas, características que já guiaram o
caminho de muita gente e ilumina os olhos de outros. Convido vocês para abrir a
porta do armário e conhecer Nárnia pelas suas influências.
A analogia das “Crônicas
de Nárnia” com a vida cristã é notável! Certamente, C.S. Lewis, que foi um
grande apologista cristão, como se pode notar em obras como “Mero
Cristianismo”, tinha a intenção evidente de passar a mensagem bíblica aos seus
leitores. A referência aos seres humanos como “filhos de Eva” explicita essa
relação entre Nárnia e a Bíblia. No filme também aparece esse simbolismo. As
comparações que serão apresentadas aqui servem como convite para que outros
espectadores procurem mais analogias e simbolismos.
O armário “mágico”
simboliza a presença oculta e misteriosa do mundo espiritual, que, embora
ilimitado, pode ser de alguma maneira contido no nosso mundo natural. Nárnia é
enorme, mas cabe dentro do armário naquele quarto abandonado. O Céu é
ilimitado, mas parece poder ser contido, de alguma maneira, nas almas dos
santos. É na parte inexplorada da casa, naquele quarto abandonado, que se abre
o mundo de Nárnia. É na escondida Nazaré, sem grande valor social, que o Verbo
divino nasce.
A descoberta de Nárnia por
Lúcia, a menor e mais inocente dos quatro irmãos, simboliza o fato de que é a
pureza que permite perceber as realidades espirituais, o que é também é
simbolizado pela virgindade de Maria, mãe de Jesus. O fato de que os outros não
acreditaram simboliza a descrença daqueles que não tiveram a experiência da
revelação cristã. A discussão entre o Professor e Suzana sobre a “lógica” da
mensagem de Lúcia simboliza as discussões que os cristãos enfrentam sobre as
relações entre “fé e razão”. O estilo pedagógico e racional do professor, de
grande clareza e eficiência na argumentação, simboliza a apologética cristão do
próprio C.S. Lewis.
As dúvidas que o fauno,
Sr.Tumnus, possuía sobre a existência de seres humanos, mostrada também pelos
títulos dos livros que tinha em casa, simboliza as dúvidas que as pessoas não
convertidas possuem sobre as existências de seres e bens espirituais. A
perseguição da feiticeira contra os seres humanos em Nárnia simboliza a
perseguição do mundo contra os cristãos. O ódio que ela possuía contra os seres
humanos simboliza o ódio infernal do diabo.
A neve permanente que
cobre Nárnia durante o governo da “Feiticeira Branca” simboliza a frieza e a
esterilidade do pecado na vida sem Cristo. A sedução de Edmundo pela Feiticeira
Branca é comparável ao pecado original e o domínio que esta lhe impõe é
comparável ao jugo que os demônios impõe à alma em pecado mortal. Começa com a
promessa de que ele poderá reinar acima dos outros e continua com a ilusão
daquela comida oferecida, a qual agrada sem satisfazer realmente e que depois é
substituída por alimentos cada vez piores e pela ameaça de petrificação, o que simboliza
o enrijecimento espiritual, e de morte. O medo que os anões e os lobos sentem
da Feiticeira simboliza o medo que toma conta da alma daqueles que seguem o
caminho maligno.
As brigas infantis entre
os quatro protagonistas antes de assumirem seriamente a missão em Nárnia
simboliza as disputas entre os apóstolos antes de Pentecostes, assim como as
rixas cristãs provocadas por desamor. A comoção e o arrependimento que Pedro,
Suzana, Edmundo e Lúcia sentem ao encontrar Aslam pela primeira vez no filme simbolizam
a consciência do pecado e o arrependimento que o cristão sente diante do
Cristo, o que já antecipa algo do juízo final.
A falta de som no encontro
entre Edmundo arrependido e Aslam simboliza o isolamento da consciência
arrependida na confissão: os pecados confessados só interessam ao próprio
pecador e a Nosso Senhor Jesus Cristo. Mesmo que esse, às vezes, seja
simbolizado pelo sacerdote - os outros irmãos, ou cristãos, não precisam ficar
sabendo. O acolhimento de Edmundo após sua traição simboliza a volta do pecador
arrependido, com a qual os seus irmão se alegram depois da orientação de Aslam
para que não falassem sobre os pecados passados. A busca que os outros irmãos
fazem para encontrá-lo simboliza a busca da ovelha perdida do Evangelho.
A pergunta que Aslam faz a
Pedro sobre sua crença nas profecias de Nárnia simboliza a importância da fé do
apóstolo Pedro e da Igreja como um todo nas profecias do Antigo Testamento e do
próprio Cristo. A alegação de incapacidade que Pedro utiliza nessa hora simboliza
a humildade dos vocacionados cristãos que percebem a própria miséria diante da
gloriosa missão à qual foram chamados. Ser nomeado rei simboliza o batismo,
pelo qual o cristão é rei, sacerdote e profeta.
A prova de Pedro, ao
enfrentar o lobo sozinho, simboliza as provas pessoais que um cristão deve
enfrentar na sua vida de fé. Os presentes que Pedro, Suzana e Lúcia recebem do
Papai Noel simbolizam sacramentos. A espada de Pedro representa a Palavra do
Evangelho que corta e penetra. A “magia profunda” que Aslam cita e à qual ele
se sujeita simboliza o poder do Pai e a sujeição de Cristo, como Filho amado,
ao Pai.
A Lei de Nárnia simboliza
a Lei de Moisés do Pentateuco. A Feiticeira Branca, nesse aspecto, simboliza o
diabo que exige para si o sangue dos pecadores. A horda de seres sinistros que
acompanham o sacrifício comandado pela feiticeira simboliza a hora de demônios
do inferno. O momento do sacrifício simboliza a “hora das trevas”. O Leão que
se deixa sacrificar simboliza o Messias inocente que morre pelos pecadores. A
agonia pela qual o Leão passa na véspera do sacrifício simboliza a agonia de
Nosso Senhor Jesus Cristo no Getsêmani. Suzana e Lúcia, nesse episódio, ao
consolarem Aslam, simbolizam os apóstolos que estavam mais próximos de Jesus
naquele momento: João, Pedro e Tiago.
A pedra que se quebra na
mesa da montanha simboliza a cortina rasgada do templo com a morte de Jesus,
isto é, simboliza o fim da vigência das leis de Moisés para aqueles que
morreram e ressuscitaram com Cristo. A ressurreição do Leão simboliza a
ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. A presença de Suzana e Lúcia ali na
ressurreição de Aslam simboliza o testemunho da ressurreição do Cristo que foi
dado por Maria Madalena.
A tropa comandada pelo rei
Pedro simboliza a Igreja militante que luta contra as tentações, contra o
pecado e contra as forças do mal que se manifestam na vida humana terrestre. O
próprio Pedro simboliza o Apóstolo Pedro, pedra na qual a Igreja foi
construída. A diversidade de seres que pertencem ao exército de Aslam simboliza
a diversidade de ministérios na Igreja. O pedido que Edmundo, o Justo, faz a
Pedro para lutar na batalha, alegando a necessidade de salvação do povo de
Nárnia, simboliza o compromisso do cristão convertido com o resto da Igreja.
A tropa que chega
posteriormente com Aslam, Suzana e Lúcia simboliza o grupo de convertidos
posteriormente, libertos da petrificação ou do pecado. Em certo sentido,
simboliza aqueles justos que morreram antes da vinda de Cristo e foram libertos
por Ele quando desceu “à mansão dos mortos”. Os petrificados, enquanto
impotentes para ajudar a si mesmos, também podem simbolizar a Igreja que não
pode se ajudar, mas depende das orações dos outros, isto é, as almas do
purgartório.
A tropa que comemora a
vitória no castelo simboliza a Igreja Triunfante dos santos que comemoram a
vitória sobre a morte do pecado. O elixir que Lúcia oferece para curar Edmundo
simboliza os sacramentos, especialmente a confissão e a eucaristia, forças
espirituais que resgatam as forças do pecador caído.
As características
principais do reino de Nárnia, com seus castelos, cavaleiros e seus reis
nomeados por Aslam, simbolizam os reinos cristãos que existiram na Idade Média,
quando os reis atribuíam sua autoridade à submissão a Cristo, simbolizado na
Igreja.
O fato de que, mesmo
depois de serem reis, os quatro protagonistas ainda precisam voltar à vida
normal de antes, onde serão governados por Marta, simboliza o fato de que os
cristãos continuam vivendo como pessoas normais no mundo, sujeitos às autoridades
políticas, mesmo depois de experimentarem realidades sobrenaturais enquanto
participam do corpo mítico de Cristo. É uma tensão permanente para o cristão,
que é simbolizada na sua dupla cidadania, terrestre e celeste. Por outro lado,
a obediência de Marta ao professor simboliza a submissão ideal dos poderes
temporais do Estado ao poder espiritual da Igreja.
O afastamento de Aslam no
final simboliza a Ascensão de Cristo que voltou para o Pai. O fato do leão não
ser “domesticado” simboliza a liberdade de Cristo em relação às instituições
religiosas: “o Espírito sopra onde quer”. A mensagem dada pelo professor a
Lúcia após os créditos, de que ela poderá voltar a Nárnia quando menos espera,
simboliza a mensagem profética da volta de Jesus em um momento que ninguém
poderá prever.
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