Baseado em fatos verídicos
'Passava
o dia no quintal, esvoaçando e cantando entre as mangueiras. Bem- te-vi que se
preza canta o tempo inteiro. Tinha uma coloração parda no dorso e amarela viva
na barriga. No alto da cabecinha passava uma listra branca, assim como na
garganta; a cauda era toda preta.
Estava bem na mira do menino, a uns 60 graus do estilingue novo, recém feito
com tiras de borracha e a forquilha amarrada ainda verde.
O menino vivia de ouvido no ar, imaginando ser um soldado a procura do inimigo,
ou, vai saber, o próprio Sargento Vic Morrow da série da TV, pronto para abater seu
primeiro troféu.
Aí o bem-te-vi cantou. Aquilo encheu o coração do menino, que sentia a
batedeira na boca enquanto encaixava a pedrinha no couro do estilingue. A pedra
saiu voando em direção ao alvo. O tiro foi certeiro… a pedra atingiu em cheio o
peitinho amarelo do bicho! Mas, para surpresa do menino, o pássaro permaneceu
imóvel, olhando fixamente para o caçador. A pedrinha simplesmente havia quicado
nas penas e caído direto no chão, sem mesmo abalar o passarinho.
O menino, assombrado, percebeu que não havia medo no olhar do bem-te-vi. A
principio teve até um pouquinho de culpa, mas aos poucos aquilo se transformou
em um misto de alívio e gratidão. Em seus 12 anos de vida, sentiu pela primeira
vez uma reverência à vida e a celebração da liberdade. Descobriu que a face de
Deus costuma aparecer nas pequenas coisas. Aprendeu a cultivar esse sentimento.
Adulto, lembra-se da história e procura entender o que realmente aconteceu.
Pensa em explicações lógicas: haveria um galho à frente que não percebera? O
projétil perdera a força vibrando no ar? Sua ansiedade de caçador imaginou tudo
isso?
Não. Tudo aconteceu exatamente assim. O homem conclui que não tentará achar
mais nenhuma explicação. A certeza que carrega é que, naquele dia, um menino
cresceu rápido para se tornar um homem de bem.'
Helena Beatriz Pacitti, outubro de 2009.
Lido em: http://pavablog.blogspot.com.br/
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