Todos os dias, depois do trabalho, Mirian preparava seu jantar, arrancava os sapatos e, com o prato nas mãos, encolhia-se em frente da TV até que seu programa preferido terminasse.
Era Agosto.
Era sexta.
E estava um dia frio lá fora.
A TV já tinha sido ligada e o jantar, pronto. Mas seu olhar não saia da carta que havia sobre a estante.
Era uma carta de sua mãe pedindo um encontro com ela e sua irmã, Mayla.
Seus pais haviam se separado fazia algum tempo e as meninas viveram com sua mãe, e com o padrasto, durante um pouco mais de três anos.
Viviam bem apesar da saudade que tinham do pai e dos momentos constrangedores em que tinham que responder, na escola, algo sobre família.
Nunca sabiam quem desenhar no papel quando a professora pedia:
-Desenhe a família de vocês e depois diga algo sobre cada um deles.
Naquele tempo, tinha riso, e macarrão, aos domingos; bem, isso até o dia em que Miriam viu sua irmã, Mayla, saindo do banheiro com seu vestido amassado e mãos tremulas.
Mayla estava pálida e seus olhos se recusavam a olhar os de Miriam enquanto essa a questionava sobre o que tinha acontecido.
Mayla apenas derramou lágrima.
Poucos minutos depois, saiu o homem alto das palavras corpulentas com um sorriso estranho no rosto.
Mayla se trancou no quarto e passou quatro dias sem comer.
Miriam, ainda menina, não sabendo lidar com a situação, foi falar com sua mãe sobre o acontecido e teve como resposta o desprezo:
- Nunca mais diga isso, Miriam! Vocês não passam de duas crianças mimadas! Se voltar a tocar nesse assunto, as mando para a casa de seu pai!
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Ouvir isso era desesperador!
Seu pai era alcoólatra e possuía atitudes ásperas.
Quando seus pais ainda moravam juntos era constante o barulho de coisas quebrando e gritos ecoando pela casa.
Sempre que seu pai vinha bêbado, Mayla e Miriam, por medo, juntavam suas camas e dormiam de mãos dadas. Uma protegia a outra!
–Miriam, promete que a gente vai ficar juntas ‘para sempre’ e pra ‘vida toda’? -Mayla perguntava.
A dor e o medo as tornaram próximas.
Quando estavam juntas, se sentiam seguras.
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Infelizmente aconteceu, de novo, a mesma história e os mesmos olhos tristes de Mayla.
Tornara-se comum Miriam ouvir, de madrugada, Mayla sufocando o choro no travesseiro ou agitando-se no meio da noite, por culpa dos pesadelos.
Mais uma vez, Miriam procurou sua mãe e, por isso, as duas foram mandadas para a casa de seu pai.
Como seu pai não tinha responsabilidade alguma com elas, Mirian começou a trabalhar cedo para cuidar dela e de sua irmã.
Seu pai era tão ausente que elas mal se lembravam de que tinham um.
Desde então sua mãe nunca fez esforço algum para se aproximar das meninas; o máximo que fazia era mandar, no Natal, um cartão com um ‘eu te amo, minhas filhas’ em letra graúda.
-Amor? Mamãe não sabe o que diz! _dizia Mayla sempre que lia os cartões.
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Miriam aprendeu a ser amiga, mãe e irmã de Mayla.
Aprendeu a dar bons conselhos sobre meninos e xícaras de chá em noites de frio.
Apesar de seu passado, Mayla tinha se tornado uma mulher forte e cheia de vida.
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Com o tempo a vida tinha colou as coisas em seu devido lugar: Mayla tinha emprego e cursava faculdade enquanto Miriam vivia entre trabalho, casa e aulas de inglês.
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Passou o tempo e os olhos de Miriam ainda estavam grudados naquela carta.
Não sabia o que fazer com ela.
Mayla tinha temperamento forte, sempre deixou bem claro que não compreendia nem aprovava as atitudes da mãe.
-Ela nunca esteve perto. Não sabe nada sobre nós, Miriam! E ainda tem coragem de escrever ‘eu te amo, minhas filhas’! _disse em tom irônico quando recebeu o ultimo cartão de Natal.
Mayla chegou.
Era fácil saber quando era Mayla pelos corredores: ela sempre fazia barulho!
Subia as escadas de um jeito apressado e falava, rindo, com o porteiro e com a limpadora de apartamentos.
Silêncio nunca fora sua maior virtude.
-Tá frio, tá frio, tá frio! _disse Mayla tirando as luvas e a boina.
-Mayla, preciso falar com você!
-Claro! Só vou pegar algo na cozinha, estou faminta! Sobre o quê é?_ perguntou Mayla deixando sua bolsa no sofá e correndo pra cozinha_ -Pode falar que eu presto atenção!
-Mamãe mandou uma carta bem diferente dos cartões de Natal. Ela quer conversar com a gente.
Silêncio.
-Mayla, você ouviu?
-Ouvi! _respondeu da cozinha.
Mayla voltou da cozinha com uma xícara de chocolate quente e pediu:
-Me deixa ver isso! _disse Mayla, pegando a carta nas mãos.
As letras eram graúdas e as pontuações, erradas.
O papel estava um pouco amassado e as palavras tinham sabor de saudade e arrependimento.
Tudo o que ela pedia era uma segunda chance, um abraço e a promessa de que tudo voltaria a ser como antes.
Na carta dizia que ela havia sido traída pelo 'homem alto de palavras corpulentas' e que sentia por ter abandona-las.
-Mayla, é hora de encararmos, de frente, a nossa história.
-Mamãe nunca soube nada sobre o amor, Miriam!
-Mas nós podemos ensinar!
-Você nunca desiste das pessoas, não é?!
-Mayla, lembra-se da mensagem que ouvimos? Daquele texto que está na Bíblia e nos ensina o amor...
Miriam e Mayla tinham começado a frequentar uma igreja e tinham a Bíblia grifada no texto:
‘O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor.O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade.Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca perece’. I Coríntios 13
-Mayla, essa é a nossa chance de perdoar e acabar de vez com essa dor que sempre volta!
-Mais dói muito, Miriam!
-Eu sei Mayla, mas você não está sozinha, sempre vou estar com você! Vai dar tudo certo. Eu prometo.
Miriam abraçou Mayla como não fazia há anos.
Mayla parecia uma criança pedindo pra ser protegida e Miriam se fez, inteira, consolação.
Todas as dores vieram à tona.
Todos os seus medos passaram por elas. Um a um, com todos os nomes e faces que possuíam.
-Não vou conseguir Miriam. É muito difícil.- Disse Mayla, baixinho.
-Deus nunca disse que seria fácil, Mayla.
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A semana passou e o encontro aconteceu.
Aconteceu também choro, abraço e histórias de ‘quando vocês eram crianças... ’.
Aconteceu vida da forma mais pura que existe quando se dispuseram a derramar perdão por todas as ausências, e distancias. Pelo não amor recebido e pela proteção que ela nunca deu.
Aconteceu cura.
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Mayla, após perdoar sua mãe, mudou.
Começou a viver ainda mais leve e a sorrir mais vezes.
Seus lábios começaram, também, dizer canção.
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Nota: Os nomes foram alterados para proteger a privacidade das irmãs.
Abraços, Lu Poulain (Luciana Leitão)
Lu,
ResponderExcluirTens o dom incomum de contar histórias ainda mais incomuns.
Beijos!
Rô