quarta-feira, novembro 23, 2011

As rãs, o pintassilgo e a coruja

Rubem Alves

Era uma vez um bando de rãs. Rãs – embora sua aparência sugira o contrário – são seres poéticos. Sobre uma rãzinha Matsuo Bashô (1644 - 1694) escreveu o seu mais famoso hai-kai: "Ah, o velho lago./ De repente a rã no ar/ e o tshinbun na água..." As rãs da nossa estória não saltavam em lagos porque viviam presas no fundo de um poço. Só que elas não sabiam que estavam presas no fundo de um poço por pensar que o universo era daquele jeito. (Muitas pessoas vivem também presas no fundo de poços sem se dar conta disso...).






Tudo começara muito tempo antes, num momento de enlevo amoroso. Um casal de rãs apaixonadas ia saltando numa noite de lua cheia em busca de um ninho onde fazer amor. Olhavam para a lua romântica e não viram o buraco à sua frente (isso acontece freqüentemente com os apaixonados...). 


O pulo seguinte os levou da luz romântica da lua ao escuro do fundo do poço. Pularam muito, o mais que podiam, para sair do poço. Inutilmente. O poço era muito fundo.

Resolveram, então, transformar sua desdita em felicidade. Como naqueles filmes em que um lindo jovem e uma linda jovem naufragam e vão parar numa ilha paradisíaca de onde não podem sair. Lembro-me até do nome do filme: Numa ilha com você... Como não havia o que fazer no fundo do poço puseram-se freneticamente a fazer amor, não por luxúria mas para matar o tempo. Freqüentemente, na vida dos casais, acontece o mesmo: faz-se amor não por amor mas para combater o tédio. O resultado foi o esperado: rãzinhas e mais rãzinhas. O fundo do poço se encheu de rãs e o casal solitário se transformou numa grande sociedade de rãs.




Como acontece com todos os seres vivos, o casal original, o Adão e a Eva das rãs, ficou velho e morreu. Com isso morreram os únicos que tinham memória do mundo de fora. As rãs-filhas, sem memória da beleza do mundo, pensavam que o que poço era tudo o que havia no universo. E o que havia lá dentro era lama, lesmas, fedor, moscas, minhocas, lacraias e escorpiões... Assim suas cabeças só pensavam lama, lesmas, fedor, moscas, minhocas, lacraias e escorpiões.




Aconteceu que, numa manhã ensolarada, voava por aqueles campos um pintassilgo que, passando perto do poço, ouviu a orquestra de rãs coaxando lá no fundo. Curioso, ele baixou o seu vôo e entrou dentro do poço. Foi um grande susto para as rãs que pensavam ser elas os únicos habitantes do universo. Algumas rãs disseram que se tratava de um extrapoço (pois não há extraterrestres?). Outros, que era uma alma do outro mundo. Uns poucos, de índole mística, pensaram tratar-se de um anjo. E outros havia que, tendo lido Freud, afirmavam que o pintassilgo era um alucinação coletiva.




O pintassilgo, penalizado da triste condição das rãs (triste para ele, que conhecia as belezas do mundo; mas as rãs, elas mesmas, que só conheciam o fundo do poço, estavam muito felizes...) começou a cantar: cantou flores, cantou rios, cantou nuvens, cantou pássaros, cantou borboletas. O que mais fascinou as rãs foi pensar que havia animais que não pulavam como elas: animais que voavam como o pintassilgo. As rãs se dividiram. Os sociólogos fizeram uma pesquisa. O resultado foi: 45% das rãs achava que o passarinho era doido pois falava sobre coisas que todas as rãs em juizo perfeito sabiam ser fantasias. 50% concordava com os teóricos da psicanálise: o dito passarinho, que se sabe não existir, por não existir seres com asas, não passava de uma alucinação. Somente 5% acreditou no pintassilgo. E uma coisa curiosa aconteceu com estas: começaram a crescer asas nas suas costas, asas como as do pintassilgo. E elas viraram pássaros – meio desajeitados, é bem verdade. Mas não importa. O fato é que se puseram a voar e saíram do poço. O pintassilgo, sentindo-se rejeitado por 95% da população de rãs achou prudente ir embora para nunca mais voltar. E assim ficaram as rãs, pelo resto de suas vidas, sem o canto do pintassilgo.


Corujas, como se sabe, são aves noturnas de rapina. Caçam animais no escuro. Pois o pintassilgo estava doido para contar sobre as rãs no fundo do poço. Viu uma coruja num galho de árvore. Chegou perto dela e lhe contou sobre as rãs no fundo do poço. Rãs, como se sabe, são um deleite para o paladar. Até os humanos as apreciam, especialmente fritas. Ouvindo falar de um punhado de rãs no fundo de um poço, a coruja abriu os olhos e prestou atenção. E pensou: tenho comida garantida para a próxima estação.

Caída a noite ela bateu suas asas e entrou dentro do poço. Noite ou dia não fazia diferença: no poço era sempre noite. Chegando lá, foi outro susto para as rãs: um outro pássaro, diferente do pintassilgo. E a coruja, que não era boba, nada falou sobre as belezas do mundo de fora. Se as rãs acreditassem num mundo de fora cheio de coisas bonitas era possível que começassem ter esperança. E é a esperança que faz crescer asas nas costas não só das rãs como também de todos os bichos, inclusive os homens. Com asas nas costas as rãs se transformariam em pássaros, voariam, sairiam do poço e iriam fazer tchinbun na lagoa. E na lagoa estariam a salvo do seu bico. "Esqueçam as bobagens que o pintassilgo cantou", disse a coruja. "O pintassilgo é um poeta e fala sobre coisas que não existem. O que realmente importa é que vocês compreendam os seus próprios pensamentos. Podem acreditar em mim. As corujas, na literatura, são símbolos da sabedoria. Eu sou sábia. Até o filósofo Hegel me cita com respeito."

A coruja iniciou, então, um detalhado processo de análise das idéias das rãs. Mas como as rãs só conheciam lama, lesmas, fedor, moscas, minhocas, lacraias e escorpiões, o resultado da análise era sempre lama, lesmas, fedor, moscas, minhocas, lacraias e escorpiões – reelaborados, é bem verdade. E assim aconteceu. As rãs, através dos anos de análise, foram ficando cada vez mais "resolvidas" quanto a lama, lesmas, fedor, moscas, minhocas, lacraias e escorpiões. E se esqueceram das belezas cantadas pelo pintassilgo poeta. E a coruja, por sua vez, foi ficando cada vez mais gorda enquanto, a intervalos regulares, uma rã desaparecia...

As estórias – coisas que nunca aconteceram – têm o poder de nos ajudar a compreender as coisas que acontecem. Essa estória, pura brincadeira, é sobre nós mesmos. Somos rãs no fundo de poços. Poços podem ser a casa, o casamento, o emprego, a bolsa de valores, a religião, as superstições, as memórias... O fundo do poço pode ser também a própria alma. Pois não disse Fernando Pessoa que a alma é um abismo? Para entender a alma Platão inventou uma estória parecida com a das rãs. Ele nos descreveu como prisioneiros acorrentados no fundo de uma caverna, com as costas voltadas para a entrada. Nessa posição não vemos o mundo lá fora (como as rãs), mas apenas as sombras desse mundo, projetadas na parede à nossa frente.

De que forma podemos quebrar a corrente que só nos permite ver as sombras? Qual o poder que dá asas às rãs, para que elas saiam do fundo do poço e vejam o mundo de fora?

Disse Bernardo Soares que nós não vemos o que vemos. Nós vemos o que somos. Só vêem as belezas do mundo aqueles que têm belezas dentro de si. Com o que concordaria Angelus Silésius, místico e poeta que viveu no século XVII, que dizia que a menos que tenhamos o Paraíso dentro de nós mesmos não há formas de encontrá-lo fora de nós.




Essa é a questão central da terapia: abrir os olhos aos cegos para que vejam. Para isso há duas possibilidades. Primeira: a alternativa da coruja... Bachelard – maravilhoso pintassilgo – dizia que um psicanalista é uma pessoa que, ao receber do seu cliente uma rosa, volta-se para ele e lhe pergunta: "E o esterco, onde está?" Como se o abismo da alma fosse um esgoto, fossa de excrementos! Essa visão terapêutica tem suas origens na psicologia do Inquisidor que pressupunha que aquele que estava sendo interrogado mentia sempre. Assim, tudo o que ele dissesse de bondade e beleza não passava de uma máscara, um disfarce para o pecado horrendo, escondido. Sua tarefa, assim, era sistematicamente destruir a bela máscara para chegar ao rosto horrível: da rosa para o esterco.

A essa visão sinistra do Inconsciente Bachelard contrapõe um "inconsciente tranquilo, sem pesadelos..." Por oposição à psicanálise sinistra da coruja, Bachelard, se psicanalista fosse, ao receber esterco do seu paciente perguntaria com um sorriso: "E a rosa, onde está?" Isso nos faz voltar a Sócrates, tal como o descreveu Platão. Para explicar o seu método terapêutico ele disse que todos os homens estão grávidos de beleza. Se vivemos como rãs no fundo de um poço é porque ainda não contemplamos a beleza que mora escondida em nós. É o inverso: o que está escondido não é o horrendo; é o belo! A tarefa do terapeuta, então, não pode ser compreendida como uma infinita análise de fezes, ao estilo da coruja, mas como um alegre cultivo de flores. Há, de fato, no fundo do poço, uma lama escura de cujas profundezas sobem bolhas malcheirosas. Mas nesse poço floresce a lótus imaculadamente branca...

O que salva não é a análise da lama. O que salva é a contemplação do lótus.



Um comentário:

  1. este conto de fernando pessoa é fenomenal. que todos possam se interessar e ler com a mente aberta e coração cheio de bons fluidos. Prof. Alfeu- 29.05.2012.

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