sexta-feira, março 23, 2012

Carência e Plenitude

Editora Vozes, 2001
3. O sentido ou a fala perdida


“À pergunta: “o que é que não vai bem?”, nem sempre a resposta é dada por um sofrimento vago ou bem localizado no corpo, mas, às vezes,  por um suspiro ou por algumas palavras misturada às lágrimas:“ Isso não tem sentido!”

Então compreende-se que a neurose possa revelar um ser frustrado de sentido, o que leva aguns a pensar que a exigência fundamental do homem não é o desabrochamento sexual (Freud) , nem a valorização de si (Adler), mas a plenitude de sentido (Frankl).

Como se sabe, um sofrimento é insuportável na medida em que não se pode conferir-lhe sentido. Tudo parece possível para quem é capaz de conferir sentido, até mesmo ao insustentável, ao impossível.
Àqueles que exigem sentido, responde-se frequentemente pela explicação; ora, esta não cumpre sua promessa, ela não é a resposta à pergunta.
Certos terapeutas limitam-se a oferecer um amontoado de explicações: tal causa, tal efeito – tal pai, tal filho; o mito está aí m justamente para oferecer respaldo à explicação: tal filho, tal assassino do pai, etc. O terapeuta já não leva a sonhar, já não estimula a interpretação livre dos sintomas que nos esmagam: uma interpretação particular acaba sendo uma explicação universal para o funcionamento da libido.  A própria Bíblia e os textos sagrados, “estes grandes reservatórios de sentido” , são utilizados como catálogos de explicações, ou ainda pior, de justificativas e, portanto, de infecção  culpabilizadora: o que tinha sido inspirado com o objetivo de curar  é utilizado para destruir,  colocar de sobreaviso em relação ao pensamento e à interpretação, aqueles que tinham necessidade de palavras, imagens e grandes figuras a fim de se abrirem para um sentido que tornasse suportável sua vida feita de dores. A palavra viva virou letra morta, letras que matam, catecismo.
A verdade nunca é dada de uma vez por todas,  nem está arrumada nas estreitas colunas dos nossos mais belos livros, mas permanece na fala desconfiada e insegura do homem  sedento de luz.  “O que é que isso significa?” “explique-me meus sonhos, o que estará acontecendo comigo...?”
Ao ouvirmos “por que?” sentimos a grande tentação de responder  utilizando a fórmula: “porque”.  E´deste modo que, desde a infância , nos têm respondido;  se tal procedimento não é assim tão ruim e inútil, acabou revelando-se insuficiente.  Para os mais insignificantes “por que?” , existe evidentemente uma resposta;  por que haveríamos de recusá-los?
Às vezes temos de remontar nossas genealogias,  identificar o traumatismo, dar nome a um mal; e este é como que circunscrito. Desta forma, acreditamos ter vencido o inominável pelas palavras e,  com efeito, verifica-se umas tréguas, um alívio: “Ah! Agora já sei o que tenho!”. A coisa está melhorando,  está menos mal,  dá para segurar, mas ainda não está “bem”;  foi possível reencontrar o fio, a cena primitiva, a partir da qual “tudo se explica”, ponto de exclamação com o qual gostaríamos de concluir a cura e esse ponto poderá tornar-se final, fatal, porque o sofrimento está de volta,, fomos enganados, a explicação não explicava tudo, a “ciência médica” ou “analítica”  tinha-nos escondido o seu não saber. Não se trata de criticar a ciência pelo que ela sabe,  mas censurá-la por não dizer simplesmente o que não sabe. O fato de envolver sua fala com longos e belos silêncios, como em poesia, tornaria a ciência menos perigosa e decepcionante.  Se o terapeuta tiver a coragem de reconhecer sua ignorância (seu inconsciente), não dará explicações, há de escutar com fervor os balbucios  de uma fala verdadeira que abre caminho  no meio de mil e uma falas aprendidas.  Sua escuta faz apelo a essa fala , ele não sabe o que é o Outro, mas compete ao outro dize-lo.  Ao falar-lhe o outro revela-se  e descobre também que está nu, que é desconhecido.
Essa fala é difícil porque a nudez pode transformar-se  em nulidade na escuta de quem supõe que sabe. O terapeuta não julga e nem decripta as imagens e os símbolos dos sonhos, mas acompanha-os como se tratasse de pegadas na areia movediça, anjo ou animal que tentam escapar às armadilhas e grades de explicação por meio das quais gostaríamos de capta-los;  vestígios do sentido que permanece inconsciente, mas orienta e alimenta cada um em seu deserto.  Neste, pede-se ao terapeuta, como a Deus,  codornizes e cebolas. Será que este pode responder com o envio do maná?   Ou seja, por outra pergunta que permitirá avançar, talvez, chegar ao oásis, e depois retomar a caminhada, de ânimo feliz, infeliz, em movimento, travessia?...

No deserto
Os hebreus tiveram fome;
O Senhor enviou-lhes o maná.
Este não podia ser conservado,
Acabava apodrecendo nas mãos
Daquele que pretendesse fazer reservas.
Como o maná carecia de sabor,
Os hebreus lamentavam-se das cebolas do Egito,
Assim como dos alimentos, cujo sabor enchia a boca.
Em hebraico “maná” – man – hú – significa:
“O que é isto?”

“...E  pela manhã, formou-se uma camada
de orvalho ao redor do acampamento.
Quando o orvalho evaporou,
Na superfície do deserto, apareceram pequenos flocos,
Como cristais de gelo sobre a terra.
Ao verem isso, os israelitas perguntavam-se
Uns aos outros:
Man hú (o que é isto?)
Pois não sabiam o que era...” Ex 16,13-15

Como já foi dito, a análise é realmente um êxodo, uma travessia de si com suas regiões áridas, suas nascentes imprevistas, sobretudo suas miragens.  Como Abraão, trata-se de caminhar em direção a si mesmo, deixar o conhecido, a casa do pai e da mãe , em direção a um país desconhecido. Instigado unicamente por uma promessa que imanta o desejo: “uma terra onde escorre leite e mel”.  Pouco importa o que escorre, trata-se sempre de uma vida, de um ser vivo que se dá para ser apreciado, saboreado.  O papel do terapeuta consiste em designar os pontos de bloqueio, os lugares de repetição, em que a vida fica congelada em uma imagem, uma fala, um trauma,   no lugar onde o rio congelou, onde a vida parou.  Na palavra “análise” existe realmente a idéia de dissolver um vínculo, desatar,  devolver a fluidez ao que se tornou cristalizado.
Muitas vezes o sentido cristalizou-se em uma explicação, uma racionalização ou coerência:  eis o que Chesterton aponta apropriadamente  quando afirma que “um louco é alguém que perdeu tudo, exceto a razão”.  Paradoxalmente o terapeuta está aí a fim de permitir que seus consulentes venham a “perder a razão” , dá-lhes o direito de “não saberem o que são”, ou seja, de não repetirem o que fazem; deste modo, ele abre uma fenda, uma clareira, um espaço de liberdade em vista do deslocamento perpétuo que é a interpretação. O que, em determinado momento, era verdadeiro, tem o direito de não se-lo em outro momento.
A atitude justa de uma sequência da vida tornou-se a injustiça de outra sequência.  Isso é verdadeiro também na evolução de uma sociedade.
E´a impossibilidade de deslocar suas normas que poderá levar à loucura ou, pelo menos “entalar” o devir.  Ao despertar o espírito do paciente para uma pluralidade de interpretações  de seu sintoma, o terapeuta devolve-lhe  a liberdade de escolher um efeito de sentido inesperado  que o liberta daquele em que tinha tendência a confinar-se. Mas deve aceitar que, por sua vez,  essa nova interpretação se apague;  caso contrário, o jogo corre o risco de cristalizar-se  e, de forma ainda mais grave,  fixar-se em uma interpretação “autorizada”, ou pior, definitiva.
O maná de que nos alimentamos , durante nosso êxodo,  não tem sabor,  não deixa qualquer vestígio no palato,  seja o do intelecto ou do coração,  ele esvai-se tão logo alimentou a fome do dia, deixando lugar a um vazio que exige ser preenchido apenas durante um instante e não para sempre. Isso seria o fim da caminhada, o fim da vida.  Estamos lembrados da imagem do jogo que tem necessidade de uma casa vazia; se esta não existir, o jogo fica bloqueado. E´como o zero: “se não existir, torna-se impossível contar; mas se for acrescentado um zero, o número decuplica”.
O terapeuta não está encarregado de deslocar os ponteiros para a hora certa (qual hora?)  mas de coloca-los na posição do zero, preservar a casa vazia,  mostrar a poeira ou a cor que a encobrem.... Se o vazio é grande demais, tenhamos a ousadia do maná de uma pergunta, resistamos ao poder da codorniz e da cebola, outras tantas vãs explicações que pretendem compensar a perda ou colmatar a carência, alimentos que enchem o estomago, que cevam, mas que não alimentam.

Não evitemos o deserto  e seu orvalho inquietante, questionador de sentido.

Tal aceitação conduz-nos a outro termo hebraico:  Amen.
 Esta palavra leva-nos a refletir entre o “aleph” e  o “mem-nun” . Em hebraico, as duas letras “mem-nun” lêem-se: maná
Dizer Amen é dizer “sim – o que é isto?”
É dizer sim a indagação que somos e aderir a ela.

A vida é nossa indagação de todos os dias, sempre nova (do mesmo modo que não se pode fazer reservas de respostas, assim também acontece com as indagações).
As velhas indagações, assim como as velhas respostas, já estão apodrecidas, não chegam a engendrar o espírito no Instante.
No deserto, o que é dado alimenta, mas não enche; desaltera, mas não estanca a sede.
O maná é o Real que surge no silêncio do mundo e que o alimenta de inquietação na sua pressa de dar nome às coisas.
Se a identidade do homem consiste em ser uma pergunta Adam = o quê?, ele só pode ser verdadeiramente alimentado por outra pergunta: maná= o que é isto?
Dizer sim a essa indagação  - Amen – sim, o que é isto?- , à sede do dia,  é o que nos manteem na caminhada pelo desejo de alcançar a nascente.
Tal indagação é suficiente – o maná – o que é isto? ; infelizes aqueles que ficam com saudades das respostas fáceis ou das sensações sutis (  codornizes ou cebolas) , do alho de uma terra em que eram escravos, com o pensamento bloqueado,  nos limites de um viver recluso sem alhures, nem Outro.
Felizes os nômades e os peregrinos mantidos, todos os dias, em estado de questionamento: estão próximos de seu nome de origem -  Adam: o quê?- , eco do noime sagrado daquele que é sem Origem (YHWH?)
Tudo isso, evidentemente,  ainda fica por desenvolver, por expressar melhor, de que modo
uma miragem perdida =  o deserto reencontrado
uma ilusão perdida = o real  reencontrado
uma explicação perdida = uma interpretação a reencontrar
uma memória perdida = uma fala a reencontrar
uma repetição perdida = o futuro a reencontrar. “
trecho p.23-28


Jean-Yves Leloup

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