Eu estava na cozinha preparando o
almoço quando fui atraída por uma cantoria alta do lado de fora. Olhei pela
janela que dá para o terraço e nada vi, mas o som continuava cada vez mais
forte, não me contive e saí à procura do autor de tão portentosa melodia.
Passei meus olhos por todo o
imenso espaço exterior e nada. Pousei meus olhos no telhado e lá estava ele (ou
ela), em plena quina. Não se ateve a mim, continuou a ressoar seu cântico que
mais parecia um discurso emocionado. Foi então que atentei que no telhado do
sobrado à frente um(a) amigo(a) lhe correspondia. Não eram da mesma espécie e
não me perguntem de que espécie ambos (ou ambas) eram, pois meu olhar urbano
consegue no máximo diferenciar urubus, pombas, beija-flores e pardais e posso
afirmar que nenhum deles era deste rol por mim elencado.
Deixei-me absorver pela sua
conversa-canto, da qual não entendia nada. Esta é outra falha grave, meus
ouvidos embrutecidos pela selva de pedra não conseguem sequer discernir se a
força daquele cântico era motivada por alegria ou tristeza.
Foi então que meus olhos avistaram
mais um pássaro a conversar. Ele ou ela – percebo que esta coisa de falar de
sexo de pássaros me parece tão misteriosa quanto o sexo dos anjos e talvez isso
explique porque ambos têm asas – mas isso é conversa para outra hora e história-
estava há uns dois sobrados de distância de meu telhado. Foi então que decidi
fechar os olhos e percebi que havia uma enormidade de cantos ecoando por todos
os cantos. Emocionei-me. Lembrei-me das
histórias de infância que nos narram as “festas na floresta”, tamanha a
intensidade dos sons que se alastravam ao meu redor.
A diferença residiu na impressão
que tive que nada celebravam. Parecia-me bem mais um lamento dolorido e íntimo.
Fiquei com isto no coração e na
cabeça ao retornar aos afazeres. Por dentro de mim reverberava a sensação de
que seja na alegria ou na desgraça a união se fez real entre a passarada.
Pensei em nós, humanos por vezes tão desumanos, que pouco ou quase nada sabemos
ou queremos saber sobre comunhão ou até mesmo sensação. Para que sentir? Para
que ser? Busca-se tanto a suficiência no miserável ter nestes nossos
dias fugazes onde poucos são os que ainda valorizam coisas que com dinheiro não
se compra.
(...)
Há pouco sentei para trabalhar,
ler notícias e eis que me deparo com a nota no jornal informando que foi liberada
a construção de prédios em meu bairro, o qual situa-se em uma das mais
verticalizadas cidades de nosso país.
Antes era apenas nossa orla tomada
por espigões, agora vejo que, caso a notícia esteja correta, os pequenos
prédios de meu bairro, bem como os sobrados que avistei com pássaros em seus
telhados, podem também estar com seus dias contados. Talvez essa fosse a origem
do lamento do bando de pássaros mais cedo ou talvez seja a constatação em forma
de lamurioso canto de toda a degradação já existente em nossos arredores. Por
fim, suspirei fundo e quis ter um canto como o dos meus amigos pássaros. Queria
poder dizer em melodia o que em palavras não sou capaz de abarcar. Por fim emudeci.
Na falta de melodia me calei.
De repente fui perpassada pela
ideia de lutar. Quem sabe tentar impedir tal movimento. Lembrei-me do adágio
que diz que “uma andorinha só não faz
verão”. Talvez seja verdade. Mas muitas andorinhas ou muitos pássaros de
formas e cantos bem variados podem marcar um sinal de mudança e nova atitude.
Decido encher os pulmões de ar e cantar. Talvez não seja compreendida. Talvez
nada mude, mas com certeza, assim como meus amigos pássaros de hoje cedo, serei
ouvida.
Roberta Lima
Agora só espero a despalavra: a palavra nascida
Para o canto-desde os pássaros.
A palavra sem pronúncia, ágrafa
Quero o som que ainda não deu liga
Quero o som gotejante das violas de cocho."
_____Manoel de Barros
Para o canto-desde os pássaros.
A palavra sem pronúncia, ágrafa
Quero o som que ainda não deu liga
Quero o som gotejante das violas de cocho."
_____Manoel de Barros
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