- Tá bom, eu conto, deixa eu falar como foi. A gente estava na cozinha.
- Todo mundo?
- Todo mundo não, né tia, vocês estavam dormindo.
- Para! Você sabe que ela está perguntando se todas as crianças.
- Isso, quero saber se estavam todos aqui
- Estávamos – disseram cantando.
- Deixa eu contar.
- Não, eu falo.
- Chega. Fale você.
- Tá. Assim, a gente estava brincando de TV, era um programa que tem comida, aí o Fe, a Lu, e o Mi eram o auditório, a Pri era a cozinheira.
- Cozinheira não! Chef.
- Tá, tá bom, Chef, que seja. Então, a Pri era a Chef. A Vaní era a apresentadora e o Samuca era o câmera.
- Ok, mas eu só quero saber quem foi que pegou o espelho que estava lá na sala, trouxe pra cozinha e deixou cair. Poxa! A tia sempre disse pra vocês que esse espelho era muito importante, eu deixo vocês brincarem na casa toda, só peço pra não mexerem nele.
- Mas não fomos nós! Falaram desorganizados, mas quase todos juntos.
- Como não? Então quem foi? Aliás cadê o Gui?
- Ele foi dormir antes de brincarmos.
- Chama ele pra mim.
- Pode deixar que eu vou.
- Eu vou perguntar, um por um. Foi você?
E assim, tia e sobrinhos deram início ao interrogatório, ela queria mais era ensinar a importância de assumirem seus erros que qualquer outra coisa. O espelho era sim importante, lembrança da bisavó, mas o mais importante, por ora, era a lição.
Todos negavam, com caras angelicais e olhar puro, estavam com as mãos pra trás e evitavam mira-la até quando podiam, baixavam a cabeça e faziam beicinho de quem se sentia injustiçado por estar naquela situação.
Ninguém assumia a culpa. Até que um deles resolveu apontar pro lado e culpar alguém.
- Foi ele, interrompeu.
- Eu não, seu mentiroso! Foi ela.
Estava armada a confusão, para fugir da responsabilidade, desde que o mundo é mundo, ainda naquele primeiro Éden, toda vez que uma pessoa se vê acuada, a primeira saída é apontar o dedo pra alguém.
- Oi tia, o que foi? Nossa! Quem quebrou?
- É o que queremos saber, Gui, você foi dormir a que horas?
- Logo depois da senhora, quando a senhora pediu pra apagar as luzes.
- É tia, ele não estava brincando com a gente não!
- Bom, então você não foi, né?
- Pode ter sido eu sim. Interrompeu o menino pra surpresa de todos.
- Mas você não estava dormindo? Perguntou a tia.
- Estava, mas é que eu sou bem capaz de fazer essas coisas, já quebrei o relógio da vovó, o quadro da mãe do meu amigo, o prato de parede da minha mãe. Vixe, já apanhei muito por conta disso.
Todos riram numa descontração momentânea, mas sabiam que não era ele.
- Mas por que você está dizendo que pode ter sido você? Ou foi, ou não foi.
- É que não lembro. Eu sou sonâmbulo tia, uma vez eu saí correndo pela rua, de madrugada, porque sonhei que tinham roubado minha bicicleta. Então, eu posso bem ter quebrado o espelho.
- Mas se você estava dormindo, se não estava brincando e fazendo bagunça, se poderia ter dito apenas que não tinha nada a ver com isso, por que está dizendo que pode ter sido você? A tia perguntou com óbvia curiosidade ao ver uma criança tão segura e franca.
- Ah, sei lá. É que eu me conheço, sei que posso fazer isso, sou criança né tia, a gente faz essas coisas mesmo.
Nesse momento, o espelho, as intrigas e a dedodurice de cada um, a cena teatral e pedagógica, tudo foi perdendo força diante da demonstração de maturidade que o menino dava. E suas palavras fizeram eco em sua alma. Ela disse que amanhã falariam sobre aquilo, disse para irem dormir e enquanto ia atrás de todos, apagando as luzes de cada cômodo no caminho, pensava consigo.
O menino havia ensinado mais do que ela planejara pro momento. E ensinou especialmente a ela, revelou profundezas de sua alma. De fato é assim mesmo que é.
Enquanto passamos a maior parte da vida dedicando esforços para fugir das responsabilidades e utilizamos a culpa do outro para nos fazermos e nos sentirmos isentos, o bom mesmo é quando assumimos que se não fizemos aquilo, poderíamos ter feito.
Isso é profundo, porque devemos olhar para as pessoas com a consciência de que poderíamos ter feito o que fizeram. É autoconsciência, é maturidade.
Não somente assumir o que faz, que já é louvável numa sociedade em que a maioria acusa o do lado ou diz que não sabia de nada, mas assumir que poderia ter feito, isso nos faz solidários e quem se coloca como igual, passível das mesmas fraquezas, não pode julgar, pode apenas compreender o outro.
Apagou as luzes, deitou-se na cama, virou pra apagar o abajur e viu a si mesma como nunca antes, percebeu uma luz acendendo dentro de si mesma e com a alma iluminada, viu. E ver a si mesmo é muito bom!
©2013 Alexandre Robles
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