quinta-feira, julho 07, 2011

O Ciclo das borboletas

“Livre filho das montanhas, eu ia bem satisfeito, da camisa aberto o peito, – pés descalços, braços nus – correndo pelas campinas à roda das cachoeiras, atrás das asas ligeiras das borboletas azuis!" Casimiro de Abreu (1837-1860)



As borboletas sempre povoaram minha imaginação e escritos, assim como povoam os versos dos poetas e os insights da psicanálise. Elas inspiram um dos mais nobres sentimentos humanos, o sentimento de liberdade. São também símbolos de transformação, de um novo começo, de renascimento.

A primeira vez que me deparei com uma coleção de borboletas estava a “borboletear” em Taiwan, país de origem da mãe de minhas filhas. Aquele pequeno e gracioso país asiático, com formato que lembra uma folha e que os Portugueses chamaram de Formosa, constitui também o habitat de aproximadamente 400 espécies de borboletas.

Dentro do borboletário, minha sensação foi de desconforto, tristeza e repúdio. Como Casimiro de Abreu, cresci admirando o vôo livre das borboletas. Observá-las aprisionadas, ressequidas, espetadas e catalogadas não me proporcionava o menor encanto. Até então, não sabia que borboletas fossem colecionadas; para mim sua magia estava em sua vida livre e colorida, em seus graciosos e mirabolantes vôos.

Hoje, ao pensar em borboletários, migram aos bandos para minha imaginação milhares de existências ressequidas, “vidas secas” lebrando Graciliano Ramos, cujas almas “catalogadas” e “aprisionadas” se ressentem de plenitude. Refiro-me a vidas “espetadas” e paralizadas pelo medo, culpa, mágoas, julgamentos, vergonha, crenças e valores. Vejo ainda as que nunca deixaram de ser “larvas”, que se arrastam movidas pela fome do ter, constantemente alimentadas e “engordadas” pelos padrões sociais, perdidas nas selvas das vaidades, nos intermináveis labirintos do ego. Vorazes predadores, alimentados por insaciável ganância e absurda vaidade, que se arrastam sobre a Terra inconsciente do que em essência são.

Penso em muitas vidas que como “lagartas obesas”, ainda que habitando em corpos esculturais, rastejam atraídas por apetites baixos e que jamais se recolheram no casulo do autoconhecimento, no silêncio da individuação. Sem nunca mergulhar em si mesmas, mantêm-se assim incomunicáveis e distantes dos tesouros do Reino de Deus que carregam dentro de si. Vivem para satisfazer a tirania dos modelos e valores sociais, vangloriando-se por serem obedientes escravas na feira das vaidades. Ávidas por responder aos menores sussurros da última moda, do bochicho da mídia, mas totalmente surdas aos gritos da alma. Buscam suprir a fome de Deus com as migalhas disponíveis nos banquete do consumismo.

Muitas se ufanam de sua civilidade, declaram-se evoluídas, sofisticadas. Em verdade, entretanto, simplesmente deixaram a aparência de quadrúpedes para andar sobre quatro rodas, trocaram as cavernas por apartamentos, no lugar de pedra e pau usam bombas e mísseis. Sob o tênue verniz da civilidade, reinam em pensamentos e criações sombrias, permanecendo ainda distantes da libertadora metamorfose. Vidas que longe de “borboletear” sustentadas pela livre leveza do ser, vivem “lagarteando” sob a tirania do ego, inchadas por dentro e sobrecarregadas por fora.

Nada fala mais sobre o Criador do que suas criaturas. Há na natureza suprimento para todas as necessidades humanas, sobretudo para as demandas do espírito e da alma. Das criaturas, em seu estado natural, vêm os mais inequívocos ensinamentos. Antes dos livros “sagrados”, a natureza já era sagrada. Com o passar do tempo, chegamos a reverenciar mais as folhas de tais livros do que as folhas das árvores; amamos cada vez mais nossas criações e cada vez menos a Criação. A rebeldia para com Deus leva à destruição da natureza numa infeliz tentativa de “calar” a voz do Criador, pois o ego sabe que diante da Criação desmascaram-se todas as suas mentirosas construções. Entretanto, quando o coração é puro, a natureza basta.

Vejamos o ciclo de vida de uma borboleta. Permitamo-nos acompanhá-la na “insignificância” do minúsculo ovo ou em sua fase pré-larval. Observemos, na sequência, o pesado e voraz corpo em sua “configuração larva”, também chamada de lagarta ou taturana. Aguardemos, paciente e reverentemente, enquanto ela fecha todas as portas e se desenvolve recolhida dentro da misteriosa crisálida. E, finalmente, deixemo-nos encantar diante da graciosidade de seu vôo em seu estágio imaginal.

Existe, no ciclo de vida de uma borboleta, uma satisfatória analogia em relação a longa odisséia humana, rumo à expressão plena do “imago Dei”.

Creio que vivemos, como espécie, o final do período da “lagarta”. Livre ou forçosamente, é hora da próxima fase, momento de nos recolhermos no “casulo”. Após devoramos praticamente tudo, tornamo-nos frutos desta “voracidade”: seres medonhos, em muitos aspectos até repugnantes. A boa noticia é que estamos percebendo nossa “feiura”. Aproxima-se, portanto, a hora do “juízo final”, do “grande julgamento”. Refiro-me ao confronto dos seres humanos com seus valores, crenças, escolhas, construções e os resultados daí advindos. Um acerto de contas com a própria consciência; um julgamento que venha de uma consciência expandida, fruto da maturidade, de uma escolha livre e responsável.
Existem muitos que ainda vivem o ciclo da lagarta, entretanto, é também expressivo o número dos que já se recolhem em suas crisálidas e buscam secretamente o Pai, que secretamente neles existe. Avoluma-se, ainda, o número dos que vão saindo dos casulos metamorfoseados em seres livres, belos, verdadeiros, amorosos, iluminados, que se tornaram o que em essência sempre foram: a imagem e a semelhança de Deus, perfeitas criaturas do Perfeito Criador, co-criadores com o Criador, “deuses menores do Deus maior”.
 
Oliveira Fidelis Filho
Teólogo Espiritualista, Psicanalista Integrativo,Administrador, Escritor e Conferencista, Compositor e Cantor.


Meninas do Reino

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